quinta-feira, 16 de julho de 2020

Nunca deixe de lembrar - Resenha






Nunca deixe de lembrar (Never look away), filme alemão do diretor Florian Henckel von Donnersmarck de 2018 nos traz uma obra de arte sensível e singela sem parecer em momento algum enfadonha. A sensibilidade do filme explode suavemente em cada camada de luz e cor que perpassa a película, saboreando-nos ainda mais com uma edição de som primorosa. As imagens dançam na tela com uma profundidade densa sem ser pesada.

O protagonista, Kurt Barnert, vivido pelo ator Tom Schilling é quem nos move por essa jornada cinematográfica, iniciando seu caminho ainda criança na Alemanha em princípios do totalitarismo nazista. Aliás, convém lembrar que o protagonista desenvolve-se por três períodos históricos que são amarrados muito firmemente ao mesmo tempo em que impregnam o personagem com as dúvidas de quem cresceu em mundos distintos.


Primeiramente, na infância de Kurt o vemos na cena inicial do filme visitando uma exposição de arte. Ao vê-lo guiado por sua tia imaginamos tratar-se dela quando na verdade ela é quem dá a base ao pequeno Kurt nesse mundo da arte. Mundo esse encravado agora no nazismo alemão que julgava depravada a arte que não servia aos ideais da grande pátria ariana. O primeiro contato de Kurt com esse mundo da arte é um embate entre a inocência da criança e a inocência/ingenuidade/loucura/liberdade da sua jovem tia. Elizabeth, a tia de Kurt, representa, de certa forma, esse misto de sentimentos que vão da loucura e inocência aos desejos ingênuos de liberdade. Que não nos percamos aqui: a tia pode ser ingênua, mas jamais louca numa acepção completa da palavra e protagoniza uma cena das mais simples e belas ao pedir uma sinfonia de buzinas aos motoristas de ônibus. Seu destino, infelizmente, torna-se o destino daquelas pessoas cujo caminho tratou de ser interpolado por um regime político dissonante de seus sonhos de vida. É nesse momento que a guerra entra em cena, de maneira rápida e concisa, o que é bom, pois o filme não tem a obrigação de tratar das desgraças beligerantes. Ponto favorável, nesse sentido, ao mostrar o desenvolvimento de pessoas comuns que foram infringidas pelo peso esmagador do nazismo e de um conflito bélico avassalador. Sem desmerecer o sofrimento de outros povos, o filme traz esse ponto de vista que poucas vezes vemos no cinema e fica expressa em uma fala do pai de Kurt ao procurar emprego no pós-guerra: “Oras, três quartos dos professores eram do partido!” E por esse motivo ele não consegue emprego, situação que já serve de gancho para pensar-se como a hegemonia nazista introjetou-se no seio de cada instituição da sociedade alemã, nesse caso, a escolar.

Passado o horror da guerra, temos então um novo período de reconstrução na vida do nosso personagem Kurt, já adolescente tendo que enfrentar todos os problemas de um novo regime: sua Alemanha agora vive sob a égide de outro sistema, o socialismo soviético, no qual Kurt vai se estabelecer como artista do povo. O “militante das tintas e pinceis” não milita e nem demonstra alguma forte convicção política, estética ou mesmo moral pelo regime. O que percebe-se é uma pessoa comum, outras pessoas comuns atravessando os difíceis momentos de uma época, de um totalitarismo a outro e tendo que sobreviver com muitas ou poucas expectativas a realidade ditada, hora por um regime, hora por outro. Entretanto, não se trata de pura apatia, conveniência ou total desconhecimento da realidade, mas tão somente a sobrevivência cotidiana.

Concomitante à vivência de Kurt desenvolve-se a história do médico Carl Seeband (Sebastian Koch), o qual exige ser tratado como “professor” a todo instante. O seu orgulho em fazer parte do regime nazista é auto evidenciado em sua própria existência, da fala à postura. É ele quem define o rumos da história de Elizabeth, a tia de Kurt, representando fielmente a crença nazista da eliminação dos fracos e doentes, sejam físicos ou mentais. O talento médico de Seeband é utilizado dentro do pensamento totalitário de elevar o nível da raça pura subtraindo da sociedade aqueles e aquelas cujos traços genéticos não condizem com a perfeição. No entanto, seu orgulho em ser o melhor médico o leva do nazismo ao socialismo em uma transição quase natural para aqueles que perseguem o poder e fazem de tudo para manter-se no topo acreditando-se vigorosamente que é o melhor dentre os melhores.
Elizabeth, a tia de Kurt, interpretada pela atriz Saskia Rosendahl
Herr Professor emoldura outro lado da história, um quase contraponto direto ao personagem de Kurt que, agora, estudando na faculdade de artes, vê novamente outra pessoa ditando-lhe o que vem a ser a arte. Se, no início do filme a arte é desprezada ou engrandecida conforme o ideal nazista, a partir da segunda parte do filme ela é estabelecida segundo os ditames do realismo soviético, pois o artista deve ser aquele que tinge os sentimentos da pátria e do povo com os traços fortes de uma realidade que nada tem de abstrata. Vemos então o professor de Kurt fazer seu discurso apontando as falhas de uma arte burguesa ocidental capitalista maculada pelo eu. “Sempre o eu, eu, eu!” Nada mais concernente com o pensamento do socialismo soviético, que no filme apresenta, pode-se dizer, o indivíduo se diluindo em nome do coletivo. Sua arte deve, assim, representar esse ente maior que é o coletivo acima de todos. Se o pai de Kurt fora um professor adepto ao nazismo por obrigação, caricaturando um “Veil Vinkler”, seu professor socialista na faculdade de artes emociona-se com o potencial do jovem Kurt em dar cor e forma aos anseios artísticos do regime.

É nessa fase que o jovem Kurt conhece o amor e também aqui um ponto favorável ao filme em mostrar toda a simplicidade e profundidade de uma trama em que dois jovens apaixonam-se. O amor aqui é tratado como uma história que deve parecer familiar a muitas pessoas. Uma escapada espetacular, uma mãe que já sabe de tudo, simpatiza com o namorado da filha mas nada conta. Um pai característico de uma época que quer apenas o “melhor” para sua filha. O seu melhor, não o melhor que ela busca. Todavia, em se tratar de uma história de amor, também a história de Kurt Barnert e Ellie Seeband – interpretada pela talentosa Paula Beer – passa por cima de todos os obstáculos que podem enfrentar, inclusive a repulsa de um pai autoritário que demonstra seu autoritarismo e repulsa sem deixar de ser, de certa forma, refinado. Algo nos leva a pensar: o pai foi nazista por ter sido doutrinado no regime ou já trazia dentro de si todo um ideal de existência que apenas aflorou durante o Reich? É de fato muito interessante pensar as camadas e nuances que se estabelecem na figura de Herr Professor, visto que de tão bom nazista tornou-se um bom socialista também, mesmo que possamos duvidar dessa camada da figura pública que ele encarna perante a sociedade. A crítica aqui nos revela algo que todos nós sabemos: há um modo de ser público e um modo de ser privado. Bem, pelo menos para o pai de Ellie. Kurt, por outro lado é uma pessoa simples, quase um livro aberto, sendo quem ele é em todos os lugares em que está. Obviamente essa abertura livresca não caracteriza nem superficialmente sua personagem, pois suas camadas são mais reveladas ao público que assiste a obra do que aos outros personagens da trama, nem mesmo à sua esposa. Ellie nunca fica de lado durante a história, vivendo cada decisão de Kurt, sofrendo o autoritarismo do pai e sendo mais que uma mera coadjuvante.

Outro momento histórico surge no filme como um parágrafo surge em uma história e marca o início da terceira parte na jornada de Kurt e de Ellie. Vemos o casal saindo da Alemanha Oriental pouco antes das portas se fecharem com a construção do Muro de Berlim. Assim ambos deixam para trás dois regimes totalitários que marcaram suas vidas, no corpo e na alma, literalmente. Tanto na alma de Kurt quanto no corpo de Ellie, ferida propositadamente por uma ideologia de superioridade de uma raça que não deveria se misturar com outra de menor significância.

No moderno mundo capitalista ocidental surgem agora novas possibilidades de existir e o passado pode ser apenas o que ele é: passado. Mesmo que suas marcas acompanhem o ser de Kurt e Ellie. É nesse novo mundo em que não há espaço para totalitarismos que Kurt vai tentar procurar sua arte. O que é muito importante para ele e instigante, pois a mensagem que lhe passam não deixa de ser totalitária: se você já tem trinta anos e não criou nada ainda, você já era. A realidade mais uma vez esmagando quem procura ir além daquilo que lhe é dito. Esse é o novo desafio para um artista cuja busca pelo estilo próprio pode ser agora mais tempestuoso do que imaginava ser antes. Pode-se inferir, inclusive, que a todo instante tentam dizer a Kurt o que a arte deve ser, o que a arte é, porém, o que ele nunca deixa de lembrar e o filme faz questão de nos recordar é que a arte é, antes de tudo, uma busca de liberdade. Uma busca que custou a sua tia mais que sua própria liberdade. Mas uma busca que deixou marcas tão profundas em Kurt que nem mesmo sua situação econômica foi capaz de derrubá-lo. Nem mesmo as artimanhas de seu sogro foram capazes de destruir em Kurt sua busca pelo seu talento. 
       
A obra do diretor Florian Henckel von Donnersmarck mais uma vez nos toca assim como já havia feito em sua outra película, “A vida dos outros”, de 2007. Ao estabelecer os totalitarismos que esmagaram a história alemã, o diretor também nos faz pensar sobre os totalitarismos diários que aqui e acola açoitam nossas decisões diárias.

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