(devaneios de um domingo a noite...)
Tenho refletido sobre nossa capacidade de sonhar
nesses últimos dias. E isso veio após discutir com meus alunos um texto que questionava
o fato dos jovens de hoje sonharem pequenos. Ao mesmo tempo o texto informava
que os adultos estão conformados e já não sonham mais. O que pensar sobre isso
tudo?
Qual o maior sonho dos pobres? Até ontem eu dizia que
o maior sonho dos pobres é ser rico. Bem, numa discussão na faculdade ontem
mesmo precisei rever isso. Que tipo de rico o pobre quer ser? Aliás, ser rico
mesmo ou famoso? Porque o maior meio de informação para os pobres em geral
ainda é a televisão e nela vemos os famosos. Ricos? Até bem pouco tempo atrás
nós nem imaginávamos existir um brasileiro chamado Eike Batista. Muito menos
que ele é um dos mais ricos do mundo. Ricos de verdade não se mostram, são
reservados e, a meu ver, estão corretos. Quem precisa saber quem realmente somos
ou o que temos?
Os pobres sonham então em ser famosos? Ou sonham com a
vida difundida pelos artistas nas telenovelas? A vida dos ricos como ela é?
O que sonhamos nós, reles mortais?
Os sonhos são os mesmos para as mesmas gerações? Pessoas
de regiões diferentes do país sonham coisas diferentes?
Pedi aos meus alunos que escrevessem sobre isso, os
adolescentes e seus “sonhos pequenos”, sobre seus heróis e seu futuro. Seis
turmas, 200 alunos. Resultado: a maioria concordou que “eles” (porque não
escrevem “nós” quando se referem a si mesmo?) sonham pequeno. Mas vou contar
uma coisa: leram um texto que diz isso e pouquíssimos contrariaram o autor, e
porque será? Lhes falta ousadia? Brio? Força de vontade ou mesmo criatividade,
imaginação? Como é difícil expressarem uma opinião própria! Apenas reproduzem,
se aquietam, se calam e aceitam como normal. Às vezes instigo-lhes de forma
mais teatral (ou seja, encarno a maldade em mim e despejo neles...rsrsrsr) para
ver a reação. Poucos reagem. O que tem acontecido com nossos jovens?
Sonhar. Terminar os estudos, um curso técnico, um
salário de mil e setecentos reais (imaginem só: solteiros, ganhando “tudo isso”,
curtindo as baladas, construindo a sua vida, nenhum compromisso com ninguém, só
curtição!), para que coisa melhor?! Quiçá uma faculdade para ter o diploma e
quem sabe ganhar um pouco mais. E no fim, prazer, puramente prazer. Parece que
máxima expressão de sua felicidade se embasa nessa busca pelo prazer. Epicuro pensaria
o que sobre nossos jovens? Ousaria dizer-lhes para serem moderados? Felicidade se
tornou ideologia, doutrina, ditadura!
Quem sonha alto? O que é sonhar alto? Ter uma casa, um
bom emprego, a companhia dos amigos e familiares, o que mais alguém pode querer?
É errado desejar “só isso”? Milhões de pessoas não possuem um quinto disso e
jamais poderemos afirmar que seus sonhos são pequenos em relação a isso.
Na verdade o que devemos nos questionar é: quem são os
jovens que sonham pequeno? Ou, o que é sonhar pequeno? O que é sonhar grande?
Grandes causas: mudar o mundo? Quem disse que o mundo
precisa ser mudado? E quem disse que o ser humano precisa ser mudado também? Se
até as pedras não são as mesmas em toda sua existência, porque teimamos em
dizer que precisamos realmente mudar?! Mudar o que, para que e para quem, isso
é a grande questão. Desejar isso é sonhar grande? Desejar ter apenas uma vida
simples e cômoda é algo pequeno? O que pode ser melhor do que ter a presença
dos que amamos e nos amam ao nosso lado? Será egoísmo desejarmos isso enquanto milhões
morrem em guerras, de pestes, fome? Ou, como dizem alguns alunos, “o que posso
fazer por aqueles que morrem de fome na África”? “O que posso fazer pelas crianças
que morrem nas guerras”? São essas questões que muitas vezes ouço de meus
alunos. O que posso responder-lhes? Dizer-lhes para rezar por eles? Bem, aposto
que muitos rezam e já vem fazendo isso há milhares de anos e na prática não
vemos acontecer nada. Pensar bem na hora do voto? O que muda meu voto se não
muda o sistema? Lutar contra o sistema? Lutar até quando? Lutar como? Lutar contra
quem? Contra qual sistema? E o que é lutar? É digitar frases revolucionárias
nas redes sociais? É escrever um texto como esse achando que vai influenciar
alguém? É postar alguma imagem chocante nas redes sociais? Lutar contra o
sistema apoiando-o descaradamente e, pior ainda, injetando-lhe mais lucro
através de um consumo insano de todas suas mercadorias? Ou seja, lutar contra o
sistema usando roupas caras, maquiagem cara, corte de cabelo caro, calçados
caros, ouvindo a música produzida pelo próprio sistema, comendo e bebendo o que
o próprio sistema oferece? Como lutar contra o sistema se nós o alimentamos com
nossas lutas? O alimentamos com nossos sonhos que são a base desse sistema que
diz que temos que ser felizes e inculcamos em nossas mentes que só seremos felizes
se pudermos ter um bom emprego, uma boa residência fixa, saúde e paz? Seremos felizes
conhecendo outros lugares e pagando para que isso ocorra? Se pagamos é porque
consumimos, logo, consumimos os lugares, consumimos o espaço e assim alimentamos
o sistema com nossa felicidade. Mas somos felizes! “Meu sonho é conhecer vários
lugares, viajar pelo mundo!” Novamente, consumir o mundo, pagar por tudo isso. Sonhos
altos, consumo alto, e o sistema continua a nos consumir também. E aí, que
mundo queremos mudar? Para quem? Para que mudar esse mundo? Para que eu não
possa mais consumi-lo ou para que ele não me consuma mais? Talvez seja por isso
que o maldito conformismo seja algo tão razoavelmente grandioso. Por que desejar
tanto e tão alto?
Os condenados sonham com a liberdade. Os libertos
estão presos a sua própria liberdade.
Os que não sonham não precisam de objetivos?
Os adultos estão conformados mesmo?
É errado aceitar as coisas como elas são de vez em
quando?
Nossos pais vem de uma época difícil lutaram muito ao
seu modo para que pudéssemos estar aqui hoje. Então porque dizemos que eles
deixaram de sonhar? O que fez o mundo com os seus sonhos? Eles venceram
dificuldades, crises econômicas, ditaduras, inflação, a distância entre a
informação e suas vidas. Largaram a escola quando sonhavam serem médicos, veterinários,
dentistas e advogados. Liam as suas histórias em quadrinhos e queriam ser como
seus heróis. Seus pais muitas vezes não eram seus heróis. A lida árdua da vida
no campo da grande maioria da população brasileira também criava homens rudes.
A violência familiar no campo nunca foi algo escondido
realmente. As crianças tinham poucos direitos, os adolescentes também. Do outro
lado, tinham inúmeras responsabilidades que os faziam crescer aprendendo muitas
coisas, às vezes aprendendo profissões. Liberdade? Tinham sim, mas era algo
diferente de hoje. Amadureciam biologicamente mais tarde, como ouvimos em
relatos. Namoro, gravidez, compromisso, família, tantas questões distintas da
atualidade. E “todos estão vivos”. Quantos primos, tios, avôs ouvimos falar
sobre as surras que levavam porque faziam alguma “arte”? E mesmo assim não os
ouço “bestemar” contra seus pais, pois aprendiam a ter respeito. Mas será que
eles diziam que seus pais eram seus heróis? Ou preferiam Pedro Malazarte, Mazzaropi
ou outros exemplos típicos do passado recente?
A produção cinematográfica muitíssimo distante dos
avanços tecnológicos atuais também causava medo e espanto e também causava o
brilho nos olhos dos jovens sonhadores. Che, Martin Luther, Gandhi, grandes
nomes que lutaram contra seus inimigos. Os movimentos pacifistas dos anos 1960,
o rock e suas letras inusitadas, viajantes, mirabolantes, poéticas e densas. Os
ídolos de hoje assumem nomes de frutas femininas ou vestem as roupas do povo
para se dizerem populares. O que era considerado brega (que para mim é muito
mais autêntico que muita porcaria atual) virou moda, o feio virou moda, tudo
vira moda. A moda é uma grande ferramenta do sistema. Ela consome os sonhos e
os transforma em enlatados. A moda transforma o absurdo, o ridículo, o bestial
em aprazível. A moda pega o lixo e o coloca em nossas mesas. A moda nos
transforma em robôs programados para só dizer sim. A moda molda nossas mentes e
anseios. O sistema aproveita tudo isso. O sistema diz que sonhamos pequenos. O sistema
molda nossos heróis. O sistema religiosamente nos diz como ser religiosos. O sistema
ama quando somos religiosos. O sistema aplaude quando negamos a religião. O sistema
sorri quando o criticamos e no abraça quando lutamos contra ele usando tudo o
que ele nos oferece: calça jeans, tênis allstar, coturnos, bandanas, roupas de
marcas, perfumados, dentro de nossos carros, nos embebedando, nos drogando, com
nossas músicas rebeldes e palavras de ordem.
E depois de tudo isso ousam dizer que não sonhamos.
Ousam dizer que sonhamos pequeno.
Ousam dizer que é errado termos nossos pais como heróis.
Como é errado? Eles apanharam de seus pais calados, choraram e os amaram até o
fim. Aceitaram abandonar a escola para poder trabalhar e ajudar suas famílias. Nossos
pais aceitaram o cinema virar uma máquina de faz conta que não faz mais. Nossos
pais aceitaram e televisão piorar mais do que podia. Nossos pais aceitaram ver
suas músicas serem esquecidas para ouvir as porcarias que o rádio toca. Nossos pais
aceitaram lutar feito loucos, abandonaram sua vida simples, complicaram sua existência,
engoliram tudo que lhes foi enfiado goela abaixo; aceitaram os mesmos políticos
que vem governando esse país há décadas; nossos pais aceitaram batalhar para
nos dar condições de estudos; nossos pais fizeram tudo isso para que possamos
estar nos finais de semana num churrasco com amigos e ainda nos dizem que é
errado tê-los como heróis? Que culpa tem nossos pais se a indústria cultural
banalizou toda a fantasia e imaginação de séculos de humanidade? Que culpa tem
nossos pais se esse texto não tem sentido algum? Que culpa tem nossos pais se
grande parte da população sonha “pequeno” em ter apenas o necessário para
sobreviver? Que culpa podemos lhes dar por não acharmos mais graça em ver um príncipe
lutando contra um dragão por uma princesa?
Culpados?
Nossos pais!
Culpados?
Nossos avôs!
Culpados?
Nós mesmos?
Não sonhamos pequeno, sonhamos o que fomos treinados a
aceitar.
Sonhamos o que aprendemos a querer.
Somos os culpados por nossos sonhos. Somos as vítimas
dos nossos desejos.
Somos culpados pela banalização da fé, da religião, do
sexo do humor.
Nós causamos gírias sem noção.
Nós vulgarizamos os sentimentos.
Nós coisificamos a nós mesmos.
Nós fizemos isso a todo instante nas redes sociais.
Somos arrogantes.
Somos hipócritas.
Somos bestas-feras.
Nós nem ao menos conseguimos perceber nossa maldade, prepotência
e nosso amor doentio por tudo o que é ruim.
Em cima disso construímos sonhos e castelos de
desejos.
Como sonhar nesse mundo?
Como desejar algo sem falso?
Como se identificar com alguma proposta sincera?
Como poderei encerrar esse desabafo?
Isso nem era para ser um desabafo!
Apenas um pensamento sobre duas coisas que nada tem de
simples: nossos adolescentes sonham pequeno? Nossos adultos perderam a
capacidade de sonhar?
Que grandes sonhos nós, adultos, podermos oferecer
para nossos jovens?
Que grandes sonhos nossos jovens podem demonstrar para
reativar nosso encanto perdido?
Poderemos andar juntos em alguma direção?
Poderei dormir em paz hoje a noite?
Eu presumo que sim...
WFMorales, 27de maio de 2012