Nem todo o Amor do mundo
Relembro uma crônica de um jornal que versava
sobre duas coisas aparentemente diversas: o amor e as leis. Chamou-me a atenção
de tal forma que sempre a cito em minhas aulas quando discutimos leis e
direitos, por exemplo.
A cronista em questão alertava-nos sobre o
excesso de leis (lembram de Utopia,
de Thomas More?), algo parecido com aquela fala que diz: “Quanto mais leis, mais ignorante o povo...” É, eu sei que pode soar
forte, mas não se pode desmerecer seu fundo de verdade. A questão é, será mesmo
que precisamos de uma lei que proteja as mulheres de nós homens? Não precisamos
de um mundo ideal para respondermos afirmativamente. O que me causa intensa
revolta é ver/ouvir coisas do tipo: “Se a roupa estiver arrumada/passada e a
comida quentinha na mesa, não apanha!” Penso eu, seria essa a ‘revolta’ de
machões que eram obrigados por suas mães a arrumarem suas camas? Aliás, quando
ouço alguém dizer que lugar de mulher é na cozinha, ou que mulher deveria se
preservar (homem se preserva?), ou que a mulher não submissa merece apanhar se
preciso for, eu questiono: “Você bateria
em sua mãe? Desejas por acaso tanto mal assim à tua mãe também?” Há um
hiato de silêncio...
Interessante também a opinião que ouvi em
sala de aula sobre idosos. Alguns jovens simplesmente os classificam como
vadios, preguiçosos, estorvos e por aí vai a lista de reclamações (reclamar não
é coisa de ‘velho’?). Questionam sua preferência em filas de bancos, nos ônibus
e sua “rabugência”. A essas alunas e alunos eu perguntei como tratavam seus
avós e lhes deixo aqui que sua imaginação os incite às respostas.
Lutar por salários melhores? Só se for pelo meu,
os outros não podem fazer greve, afinal, o motorista do ônibus fica sentado o
dia inteiro e o professor só sabe ficar lá na frente falando coisas que não
entendo e nunca vou usar na vida, pois já tenho um emprego que não exige muito
da minha inteligência...
Ajudar o próximo? Já o coloco em minhas
orações...
Piedade? Não me faz crescer na vida.
Dividir? Vai trabalhar vagabundo!
E assim caminha a humanidade, um universo de
umbigos enterrados em si mesmos, por isso o excesso de leis: como não
conseguimos conviver, comungar nossa própria existência entre os nossos e com o
Meio Ambiente, elaboramos uma miríade de limitações à sociedade para nossa
própria convivência individual. Hobbes nos alertava sobre a ‘animalidade’ que
impõe o ser humano a guerrear entre si ‘naturalmente’. O estabelecimento da
sociedade, do Estado e das leis seria a melhor forma para garantir a
sobrevivência humana.
Pode parecer estranho eu falar de amor aqui,
porém, falo do amor como Humberto Maturana o entende, um sentimento agregador,
compartilhador, diferente daquele sentimento que dá à competitividade o status
de mola propulsora da evolução humana. A competitividade tem na vitória o seu
objetivo final e a conquista da vitória impõe o sentimento de inferioridade da
derrota ao outro como um outro menor, incapaz, mesmo que repitamos o mantra
sagrado: “O importante é competir, não
ganhar!” Inevitavelmente um ganhador será o destaque do primeiro lugar.
Vivendo uma cultura competitiva até suas
últimas instâncias, não é nada novo constatar nossa falta de amor. Precisamos
desentender-nos muito para conseguir alguma reflexão e, apaixonados como somos,
tornamos qualquer coisa item obrigatório de discussão. Não basta contentar-se
com a mudança da opinião alheia para o nosso lado, exigimos que a mudança
mostre-se publicamente para que sejamos reconhecidos em nossa vitória. A
dificuldade, talvez, esteja em nossa capacidade de compreender o outro como um
outro com sentimentos, história particular. Não quero aqui eximir ninguém da
responsabilidade por seus atos, pelo contrário. Nossas leis têm sua validade
legitimada na medida em que sustentam nossa sobrevivência, enquanto espécie,
embora pouco nos importemos com as outras espécies, animais e vegetais...
É verdade, contudo, que seja muito difícil
amar ao próximo como se não houvesse amanhã, porque o amanhã não é apenas um
lugar, é um mar de possibilidades. É mais ainda, um oceano de resultados do
hoje.
O discurso da intolerância aqui não se
encaixa também, pois tolerar é fácil, exige pouco de cada um de nós, exige
inclusive balançar a cabeça ou silenciar-se perante o nosso ‘diferente’. Por
outro lado, o respeito, ou a alteridade, nos pede conhecimento profundo,
reconhecimento de nós, do eu e do outro, responsabilidade consciente do existir
alheio. Como dito anteriormente, precisamos de leis para proteger mulheres,
crianças e idosos, homossexuais, plantas e animais, nossos rios e lagoas?
Infelizmente – ou felizmente, como saber? – para nossa vida em sociedade, para
o nosso próprio bem, nossa legislação ainda nos protege. Para o bem e para o
mal...
Retornando à crônica que deu origem a esta
reflexão, falta-nos Amor, sobram leis, questionadas, defendidas, burladas,
repelidas. Se nós respeitássemos nossas mulheres e idosos, por exemplo, não
necessitaríamos dos estatutos que os protegem. Falta muito ainda para
evoluirmos...
Enquanto o irascível sentimento de destruição
alheia povoar nossa razão e coração, continuaremos a destituição de nossa
humanidade. Nem todo o Amor do mundo poderá nos salvar enquanto empunharmos as
armas que nos distanciam.
08 de abril de 2016
Nenhum comentário:
Postar um comentário