A
modernidade se liquefaz concomitante às nossas memórias a escorrerem pelo
rastro do tempo. A solidez do passado desmancha-se gradualmente e sua
velocidade de desbotamento aumenta a cada dia. Estradas transformam-se em ruas
que algum tempo depois são pavimentadas. O baldio vira fábrica e o silêncio um
triste eco do tempo pretérito. O presente se desfaz na rotina barulhenta de um
mundo em constante solução às crises que ele próprio cria. Para completar a
‘magia’ uma revolução tecnodigital que conecta a todos na distância enigmática
dos seus lares. Nem as fotografias escapam.
Lugares
por onde andei de bicicleta hoje transitam pesados veículos carregando frutos
diversos do progresso econômico. Aqueles pobres cursos d’água que chamávamos de
valo esconderam-se por debaixo de novos bairros. As sangas e regatos mais
livres foram destituídas de sua pureza e domesticadas pelos canos de esgoto. A
brincadeira ao ar livre foi presa em alguma recordação agridoce que talvez
jamais será revivida pelas gerações vindouras. Resta-nos acreditar no futuro?
Que lugar se dará um futuro qualquer? Quem sabe alguma distopia triste, uma
caricatura dos avanços humanos sobre os restos de nós mesmos. O distante cinza
da cidade grande agora emerge nas pequenas comunidades aviltando largas
gargalhadas de seus mais ambiciosos coronéis. Ao passo que a riqueza se
aproxima de poucos ‘afortunados’ a violência invade os espaços de todos: ricos
e pobres equalizam misérias nas injustiças e suas vilanias mais cruéis. Ter e
ser não se entendem nem se encontram: ter e esconder é o mais desejável, o que
pode parecer paradoxo, afinal, qual seria o objetivo de tanto acumular se
ninguém poderá sequer saber que tanto foi escondido?
Amplos
espaços dominados por frondosas árvores, algumas da época da colonização,
espaços onde nossos olhos podiam se maravilhar com o parco verde que ainda nos
alcança são dizimados e seus moradores naturais – aves e toda sorte de animais
terrestres – são despejados sem que possam ter o direito de minimamente serem
recordados. Não precisamos proteger tímidos exemplares de nossa fauna, pois
para eles estão garantidos os parques e reservas, pensamos. Numa inversão
burlesca pode-se inquirir tratar-se os novos loteamentos que pipocam nas
periferias de reservas outras destinadas ao gado humano. Às reses de maior
prestígio garantem-se reservas com fios elétricos nos seus altos muros: não
poderia haver símbolo maior para o holocausto da vida coletiva! Eis um tempo
onde poderemos contar nos dedos crianças a divertirem-se livremente em suas jaulas!
Solapados
por nossos sonhos de crescimento tentamos encontrar um lapso de felicidade nos
encontros de amigos e colegas de escola. Engordurados por uma vida agonizante
em que os ponteiros do relógio riem do nosso estresse diário rememoramos os
bons tempos de uma vida sem conexão digital, sem redes sociais, mas repleta de
conexões sentimentais, espirituais, culturais e redes de desconhecimento do que
quer que fosse (mesmo quando na verdade pouco se sabia sobre coisa qualquer).
Em nossa ignorância de gente simples da cidade pequena éramos felizes por não
haver entre nós nenhum cinéfilo, bibliófilo, crítico cultural ou outra pessoa
qualquer academicamente domesticada por esse universo de possibilidades e
oportunidades contemporâneas. Os mais velhos ainda eram vivos, hoje são
retratos fossilizados em jazigos tão silenciosos quanto sua presença nos
devaneios desses que agora avançam seus passos. Aliás, a palavra presença
carrega consigo um significado que ainda não havia me apercebido: o presente da
ausência. Aqueles mais velhos tornaram-se história, escrita ou apagada. Os que
eram jovens hoje resmungam por não se entenderem com os jovens do presente.
Todavia, tanto jovens quanto adultos tornamo-nos apenas uma presença: uma
ausência sempre presente. Assim o espaço a nossa volta se transforma de natural
a humano, de rural a urbano e o verde cede o seu devir a um porvir cada vez
mais incerto.
Onde
havia árvores agora há postes, onde corria a água mais pura agora corre o nosso
dejeto. Onde voava a liberdade, agora voam veículos barulhentos. Onde a brisa
do vento cantava sinfonias de sonhos solapam nossos ouvidos com desrespeito
entre vizinhos: quem faz mais ruídos se torna o mais gabado.
À
noite ainda ouvíamos grilos e sapos e quando chovia era gostoso correr por
entre seus pingos. Hoje somente o costume de dormir sem nunca nada realmente
ouvir. A falta da energia elétrica, as famosas quedas, tornaram-se raríssimas e
como um fantasma que se assombra num espelho, é nesse equivoco tecnológico que
podemos ouvir nossas vozes em meio ao respirar da natureza: o silêncio expiado
da nossa convivência é uma música inaudita que ainda a alguns encanta. Não era
um mundo mais perfeito do que é agora e nem precisa ser na realidade. Era mais
simples, mais direto. Era maior, amplamente vago, é verdade, mas intimamente
tudo tão mais perto.
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