Capa da edição nº 34, de 1986 |
O livro “Cazuza” conta uma história infantil do Brasil da
década de 1930. Foi o período da Era Vargas, do nacionalismo, do modernismo, da
ideologia do progresso e do patriotismo. A obra de Viriato Corrêa encarna os
pressupostos citados e sobre eles destila inúmeras falas de embevecimento.
Analisando-a pelo olhar externo, podemos distinguir claramente a formação moral
de uma época que se pretende forjar uma identidade nacional para um vultoso
futuro. Se, contudo, usarmos apenas filtros internos, perceberemos que a mesma
formação moral mantém-se lá a evidenciar e enaltecer uma visão de progresso.
Cazuza é o menino simples do interior distante, do povoado
esmaecido no mapa, quando se há o registro. O lugar em que vive esta primeira
etapa de sua infância localiza-se nos sertões do Maranhão. Terra de coronéis,
de uma vida dura para muitos, de escolaridades precárias. É onde tem seu
primeiro contato com as letras e onde sonha com uma fantasia de escola. A realidade,
porém, destrói seus sonhos: na escola atrasada do interior o professor é a lei
dentro da deteriorada sala de aula e a palmatória é sumidade inflexível e
indiscutível. O analfabetismo reinante e a rudeza do lugar corroboram para
criar uma imagem quase oposta ao ideário civilizatório. O progresso, quando
chega, é na figura do médico a aviltar ânimos e curar doenças que são, por
vezes, despercebidas. Medicina e ignorância opõem-se. A família de Cazuza não
tarda a mudar-se do povoado. Sua história parece então o emblema linear de um
progresso gradual, porém determinado a galgar seu merecido espaço.
Cazuza muda-se com sua família para a vila. Os tempos de
palmatória ficarão para trás, juntamente com as amizades e as lembranças.
Cazuza aceita tudo com simpatia e um sorriso doce no rosto. Toda novidade é
encarada com a maior alegria possível: o novo contagia, amplia horizontes e
cria um espasmo eufórico de futuro. O menino quase bruto do povoado embrutecido
caminha agora um passo, pequeno talvez, mas muito importante, para um mundo
maior, aparentemente mais livre e também mais organizado.
A escola da vila corresponde aos sonhos da infância
pré-escolar: é colorida e vívida, educa ao invés de castigar, orienta e forma
pessoas melhores. As professoras possuem uma formação mais humana e,
concorrendo com toda a carestia estrutural – desde instalações físicas até
condições próprias de sobrevivência – fazem da escola o berço do amanhã mais
justo da grande pátria. Os castigos da palmatória são substituídos por fábulas
edificantes, por histórias e conselhos pontuais sobre causas e efeitos e,
porque não, crime e castigo. Para um país que se quer grande não basta punir,
urge edificar bons homens para a posteridade. O narrador Cazuza pontua
distintamente cada momento enaltecedor. Antes um menino bruto, embora amável;
agora um menino educado, pronto para um passo mais largo do progresso.
O progresso é urbano e vive longe dos sertões e povoados
opacamente mapeados do Brasil na primeira metade do século XX. Para cumprir seu
destino ao progresso, Cazuza abandona mais uma vez os seus e, a revelia de suas
lágrimas, acena sorridente ao novo que vislumbra: a capital São Luís. Embora
ainda interiorana, São Luís representa naquele momento o progresso maior e é
onde Cazuza estudará, no internato. Entretanto, nada há que se compare aos
rigores atheneicos: na nova escola,
mais do que nunca, a educação liberta o homem para seu ideal maior de ser
civilizado. É na nova escola que os discursos mais se avolumam e mais se
cristalizam. As diferenças sociais são atenuadas, naturalizadas e distinguidas
meramente como acaso ou condição de esforço e vontade. Ricos e pobres são tratados
quase que igualmente e, como na escola da vila, o castigo físico pelos erros é
rígida e sofisticamente substituído pelo discurso moral. A pátria é
engrandecida pela narrativa enobrecedora dos grandes vultos da história. A
história de Luís Gama é emblemática: na grande pátria Brasil há o espaço
garantido daqueles que fazem por si. Num arremedo quase fantástico, o nobre rende-se
ao pobre na disputa pela medalha de ouro. Quem disse que um rico não possui
sentimentos e humildade para reconhecer o brio e força de vontade do pobre que,
apesar de todos os percalços da vida, consegue se lhe mostrar superior?
Viriato Corrêa consegue em sua obra amalgamar o ideário de
uma época. O movimento escolanova, o discurso nacionalista e patriótico de
Vargas bem como a exaltação liberal do progresso modernista. As críticas miram
poucos alvos, justamente aqueles que se contrapõe ao “espírito” da época. Ao
narrar os fatos de uma infância que se remodela do interior para o urbano,
Corrêa narra também a história do Brasil: a infância colonial do povoado bruto
para a escola edificante do mundo urbano.
Referência: CORRÊA,
Viriato. Cazuza. 34º ed. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1986.
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