quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

Escola e progresso na obra “Cazuza” de Viriato Corrêa



Capa da edição nº 34, de 1986
O livro “Cazuza” conta uma história infantil do Brasil da década de 1930. Foi o período da Era Vargas, do nacionalismo, do modernismo, da ideologia do progresso e do patriotismo. A obra de Viriato Corrêa encarna os pressupostos citados e sobre eles destila inúmeras falas de embevecimento. Analisando-a pelo olhar externo, podemos distinguir claramente a formação moral de uma época que se pretende forjar uma identidade nacional para um vultoso futuro. Se, contudo, usarmos apenas filtros internos, perceberemos que a mesma formação moral mantém-se lá a evidenciar e enaltecer uma visão de progresso.

Cazuza é o menino simples do interior distante, do povoado esmaecido no mapa, quando se há o registro. O lugar em que vive esta primeira etapa de sua infância localiza-se nos sertões do Maranhão. Terra de coronéis, de uma vida dura para muitos, de escolaridades precárias. É onde tem seu primeiro contato com as letras e onde sonha com uma fantasia de escola. A realidade, porém, destrói seus sonhos: na escola atrasada do interior o professor é a lei dentro da deteriorada sala de aula e a palmatória é sumidade inflexível e indiscutível. O analfabetismo reinante e a rudeza do lugar corroboram para criar uma imagem quase oposta ao ideário civilizatório. O progresso, quando chega, é na figura do médico a aviltar ânimos e curar doenças que são, por vezes, despercebidas. Medicina e ignorância opõem-se. A família de Cazuza não tarda a mudar-se do povoado. Sua história parece então o emblema linear de um progresso gradual, porém determinado a galgar seu merecido espaço.

Cazuza muda-se com sua família para a vila. Os tempos de palmatória ficarão para trás, juntamente com as amizades e as lembranças. Cazuza aceita tudo com simpatia e um sorriso doce no rosto. Toda novidade é encarada com a maior alegria possível: o novo contagia, amplia horizontes e cria um espasmo eufórico de futuro. O menino quase bruto do povoado embrutecido caminha agora um passo, pequeno talvez, mas muito importante, para um mundo maior, aparentemente mais livre e também mais organizado.

A escola da vila corresponde aos sonhos da infância pré-escolar: é colorida e vívida, educa ao invés de castigar, orienta e forma pessoas melhores. As professoras possuem uma formação mais humana e, concorrendo com toda a carestia estrutural – desde instalações físicas até condições próprias de sobrevivência – fazem da escola o berço do amanhã mais justo da grande pátria. Os castigos da palmatória são substituídos por fábulas edificantes, por histórias e conselhos pontuais sobre causas e efeitos e, porque não, crime e castigo. Para um país que se quer grande não basta punir, urge edificar bons homens para a posteridade. O narrador Cazuza pontua distintamente cada momento enaltecedor. Antes um menino bruto, embora amável; agora um menino educado, pronto para um passo mais largo do progresso.

O progresso é urbano e vive longe dos sertões e povoados opacamente mapeados do Brasil na primeira metade do século XX. Para cumprir seu destino ao progresso, Cazuza abandona mais uma vez os seus e, a revelia de suas lágrimas, acena sorridente ao novo que vislumbra: a capital São Luís. Embora ainda interiorana, São Luís representa naquele momento o progresso maior e é onde Cazuza estudará, no internato. Entretanto, nada há que se compare aos rigores atheneicos: na nova escola, mais do que nunca, a educação liberta o homem para seu ideal maior de ser civilizado. É na nova escola que os discursos mais se avolumam e mais se cristalizam. As diferenças sociais são atenuadas, naturalizadas e distinguidas meramente como acaso ou condição de esforço e vontade. Ricos e pobres são tratados quase que igualmente e, como na escola da vila, o castigo físico pelos erros é rígida e sofisticamente substituído pelo discurso moral. A pátria é engrandecida pela narrativa enobrecedora dos grandes vultos da história. A história de Luís Gama é emblemática: na grande pátria Brasil há o espaço garantido daqueles que fazem por si. Num arremedo quase fantástico, o nobre rende-se ao pobre na disputa pela medalha de ouro. Quem disse que um rico não possui sentimentos e humildade para reconhecer o brio e força de vontade do pobre que, apesar de todos os percalços da vida, consegue se lhe mostrar superior?

Viriato Corrêa consegue em sua obra amalgamar o ideário de uma época. O movimento escolanova, o discurso nacionalista e patriótico de Vargas bem como a exaltação liberal do progresso modernista. As críticas miram poucos alvos, justamente aqueles que se contrapõe ao “espírito” da época. Ao narrar os fatos de uma infância que se remodela do interior para o urbano, Corrêa narra também a história do Brasil: a infância colonial do povoado bruto para a escola edificante do mundo urbano. 

Referência: CORRÊA, Viriato. Cazuza. 34º ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1986.


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