quarta-feira, 13 de julho de 2016

Verde vira memória



A modernidade se liquefaz concomitante às nossas memórias a escorrerem pelo rastro do tempo. A solidez do passado desmancha-se gradualmente e sua velocidade de desbotamento aumenta a cada dia. Estradas transformam-se em ruas que algum tempo depois são pavimentadas. O baldio vira fábrica e o silêncio um triste eco do tempo pretérito. O presente se desfaz na rotina barulhenta de um mundo em constante solução às crises que ele próprio cria. Para completar a ‘magia’ uma revolução tecnodigital que conecta a todos na distância enigmática dos seus lares. Nem as fotografias escapam.

Lugares por onde andei de bicicleta hoje transitam pesados veículos carregando frutos diversos do progresso econômico. Aqueles pobres cursos d’água que chamávamos de valo esconderam-se por debaixo de novos bairros. As sangas e regatos mais livres foram destituídas de sua pureza e domesticadas pelos canos de esgoto. A brincadeira ao ar livre foi presa em alguma recordação agridoce que talvez jamais será revivida pelas gerações vindouras. Resta-nos acreditar no futuro? Que lugar se dará um futuro qualquer? Quem sabe alguma distopia triste, uma caricatura dos avanços humanos sobre os restos de nós mesmos. O distante cinza da cidade grande agora emerge nas pequenas comunidades aviltando largas gargalhadas de seus mais ambiciosos coronéis. Ao passo que a riqueza se aproxima de poucos ‘afortunados’ a violência invade os espaços de todos: ricos e pobres equalizam misérias nas injustiças e suas vilanias mais cruéis. Ter e ser não se entendem nem se encontram: ter e esconder é o mais desejável, o que pode parecer paradoxo, afinal, qual seria o objetivo de tanto acumular se ninguém poderá sequer saber que tanto foi escondido?

Amplos espaços dominados por frondosas árvores, algumas da época da colonização, espaços onde nossos olhos podiam se maravilhar com o parco verde que ainda nos alcança são dizimados e seus moradores naturais – aves e toda sorte de animais terrestres – são despejados sem que possam ter o direito de minimamente serem recordados. Não precisamos proteger tímidos exemplares de nossa fauna, pois para eles estão garantidos os parques e reservas, pensamos. Numa inversão burlesca pode-se inquirir tratar-se os novos loteamentos que pipocam nas periferias de reservas outras destinadas ao gado humano. Às reses de maior prestígio garantem-se reservas com fios elétricos nos seus altos muros: não poderia haver símbolo maior para o holocausto da vida coletiva! Eis um tempo onde poderemos contar nos dedos crianças a divertirem-se livremente em suas jaulas!

Solapados por nossos sonhos de crescimento tentamos encontrar um lapso de felicidade nos encontros de amigos e colegas de escola. Engordurados por uma vida agonizante em que os ponteiros do relógio riem do nosso estresse diário rememoramos os bons tempos de uma vida sem conexão digital, sem redes sociais, mas repleta de conexões sentimentais, espirituais, culturais e redes de desconhecimento do que quer que fosse (mesmo quando na verdade pouco se sabia sobre coisa qualquer). Em nossa ignorância de gente simples da cidade pequena éramos felizes por não haver entre nós nenhum cinéfilo, bibliófilo, crítico cultural ou outra pessoa qualquer academicamente domesticada por esse universo de possibilidades e oportunidades contemporâneas. Os mais velhos ainda eram vivos, hoje são retratos fossilizados em jazigos tão silenciosos quanto sua presença nos devaneios desses que agora avançam seus passos. Aliás, a palavra presença carrega consigo um significado que ainda não havia me apercebido: o presente da ausência. Aqueles mais velhos tornaram-se história, escrita ou apagada. Os que eram jovens hoje resmungam por não se entenderem com os jovens do presente. Todavia, tanto jovens quanto adultos tornamo-nos apenas uma presença: uma ausência sempre presente. Assim o espaço a nossa volta se transforma de natural a humano, de rural a urbano e o verde cede o seu devir a um porvir cada vez mais incerto.

Onde havia árvores agora há postes, onde corria a água mais pura agora corre o nosso dejeto. Onde voava a liberdade, agora voam veículos barulhentos. Onde a brisa do vento cantava sinfonias de sonhos solapam nossos ouvidos com desrespeito entre vizinhos: quem faz mais ruídos se torna o mais gabado.

À noite ainda ouvíamos grilos e sapos e quando chovia era gostoso correr por entre seus pingos. Hoje somente o costume de dormir sem nunca nada realmente ouvir. A falta da energia elétrica, as famosas quedas, tornaram-se raríssimas e como um fantasma que se assombra num espelho, é nesse equivoco tecnológico que podemos ouvir nossas vozes em meio ao respirar da natureza: o silêncio expiado da nossa convivência é uma música inaudita que ainda a alguns encanta. Não era um mundo mais perfeito do que é agora e nem precisa ser na realidade. Era mais simples, mais direto. Era maior, amplamente vago, é verdade, mas intimamente tudo tão mais perto.



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