terça-feira, 28 de junho de 2016

Aqui existe um rio

Fonte: http://criciumanews.com.br/2014/11/04/mais-24-mil-mudas-de-arvores
-serao-plantadas-as-margens-do-rio-sangao-em-forquilhinha/



O desastre ecológico de Mariana/MG, suscita um debate constante sobre o progresso, esse ente ‘intocável’ que faz a roda do mundo girar. No Sul catarinense nossos rios há muito também deixaram de ser ‘Doces’ e alguns sequer são lembrados como rios pela própria população.

Muito se discute sobre o que o futuro nos reserva em relação a água e seu uso ‘racionalmente’ desperdiçado diariamente. A construção de barragens tornou-se um “mal ambiental” necessário à nossa existência. A região carbonífera estaria sofrendo com a escassez de água potável se não tivéssemos a barragem do rio São Bento. Mais ao Sul trava-se antiga batalha pela construção da barragem do rio do Salto. Questões políticas a atrasam e põem em pauta os impactos que representa. Fatores ecológicos, sociais e éticos, afinal um rio é sempre mais do que um simples elemento a figurar em meio à paisagem. A água é envolta em simbologias, como citava Bachelard poeticamente em “A água e os sonhos”. Gilberto Freyre ao analisar a cultura da cana-de-açúcar na formação do Nordeste brasileiro conseguiu perceber a íntima relação entre o ser humano e a água dos rios. Nos idos de 1937 já denunciava a degradação que os rios sofriam com o avanço do progresso desmedido. Antes dele, José Bonifácio ecoava medidas de proteção às nascentes e vegetação dos morros nos finais do século XVIII. Distantes no tempo e atuais em suas prerrogativas: indiscriminadamente destruímos nossas maiores riquezas e hoje corremos o risco de sufocar no acúmulo de nossos comodismos.

Recentemente tivemos duas publicações sobre rios de nossa região, o Mãe Luzia e o Criciúma, este último típico representante urbano: escondido em tubulações que domam suas curvas. Contudo, outros rios jazem emudecidos em seus leitos desprovidos de qualquer esperança. O rio Sangão talvez seja o mais danificado entre todos, assemelhando-se a uma vala aberta para retirada do carvão, sendo-lhe a água algo muito distante do que se possa chamar de vida. A degradação e poluição de nossos rios alcançou níveis tão extremos que muitos sequer os percebem como rios, mortos que sejam. Assim é o rio Sangão, como um corpo abandonado na sua indigência de perecer, sem o direito de ser considerado um estéril leito de morte, unicamente alcunhado: esgoto.

O esforço da sociedade civil em prol de nossos rios urge cobrar de nossos governantes sensibilizar-se com as questões socioambientais. Aqui, entre a vegetação que teima em “ciliar-se” jaz um rio. Os avanços de nossa sociedade o mataram, mas teremos coragem de ressuscitá-lo?


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sábado, 11 de junho de 2016

Um país sem escolas



Começou um estremecimento social ininterrupto e precisei fugir do meu país. Melhor dizendo, eu fui expulso. Era isso ou morrer, talvez não biologicamente falando, mas morrer no sentido de existir. Como existir sem ser aquilo que se é?

A gente começa a morrer quando começam a nos proibir: proibir de falar, depois de escrever, ou tudo junto. Daí te proíbem de olhar e até de ouvir. Não contentes, começam a nos proibir de pensar e logo mais já estamos proibidos de existir. Para a morte consumada é apenas um passo. E foi assim que começaram: proibindo tudo aquilo que não conseguiam entender, tudo aquilo que lhes custava aprender, proibindo os diferentes de serem “diferentes”. Proibiram as pessoas de seus direitos fundamentais, tudo lentamente, tudo arquitetado maquiavelicamente com leis bem elaboradas que gradualmente cercearam a liberdade de quase todo mundo.

Aqueles que eram incapazes de olhar de outra forma ou de pelo menos observar os vários lados de uma mesma moeda capciosamente tolheram a liberdade de ser, tudo em nome – o velho lugar-comum – tudo em nome da moral e dos bons costumes. Era tudo em nome das pessoas de bem, jamais do bem das pessoas. Na falta de um nome melhor para classificar aquelas pessoas, nós os tínhamos pela alcunha de “Incapazes”: de ver o outro, de sentir o outro, de falar com o outro, de aceitar o outro, de ler e aprender a ser como si próprios e como os outros. Incapazes de refletir, incapazes de amar, incapazes de sentir, incapazes de aceitar tudo que fosse contra suas vontades e desejos de autoridade. Começaram pelas escolas.

Aos professores proibiram de ser quem eram e emitiram um decreto obrigando-os à neutralidade de suas disciplinas. Suas opiniões foram castradas! Acusados de doutrinadores tiveram que obrigatoriamente calar-se ante o repúdio progenital e, impedidos de ensinar, deixaram de realizar sua tarefa mais básica: desenvolver-se em meio ao conhecimento consigo e com seus alunos. Os progenitores, sempre distantes das salas de aula, galgaram ao nível de reais paladinos da educação escolar, cabendo aos mestres e docentes a atividade de transmitir aos seus pupilos unicamente o que agradava aqueles. Transmitir é um verbo que sempre machucou os ouvidos dos professores, embora muito debate tenha se travado sobre ele, no final foi o que lhes restou: meros apêndices de informação.

Em pouco tempo o risco da doutrinação foi escalpelado das salas de aula depois que alguns renitentes tentaram, em vão, cumprir suas reais funções de mestres: foram demitidos, perseguidos, abafados e por fim presos. A lição havia sido passada, aprendida e avaliada como justa. Assim se encerrou o pesadelo da doutrinação em sala de aula. Era de se esperar, contudo, que a doutrinação voltasse aos lugares de origem: as reuniões de sindicatos e partidos, as igrejas principalmente, e as reuniões sagradas dos grandes clubes da mão que ninguém vê. Porém, as próprias escolas voltaram a ser doutrinadoras, agora ensinando o rico “bê a bá” da boa moral, da límpida ética e dos sagrados costumes que guiavam o povo Incapaz. Finalmente tudo correria bem para as pessoas de bem!

Rapidamente percebeu-se que tudo aquilo era em vão se os Incapazes não impusessem seu mundo e sua forma de ver o mundo aos jovens alunos que construiriam uma nação rica e poderosa, um verdadeiro novo mundo! O primeiro ataque era esperado e atingiu as ciências humanas, o que sempre soou estranho, pois se somos seres humanos, porque não podemos aprender sobre nós? Filosofia, uma disciplina ‘difícil’, totalmente desnecessária. Adolescentes nada têm que ficar divagando. Divagações são coisas de poetas, seres abjetos, preguiçosos que só fazem ficar contemplando o mundo sem fazê-lo desenvolver-se. Filosofia? O pensar sobre o pensar? Trabalhadores não precisam disso, trabalhadores precisam aprender seu lugar. E com um corte certeiro a filosofia fora decepada dos bancos escolares! Em seguida, obviamente, a sociologia teve seu quinhão! Sociologia é uma palavra que lembra socialismo e teve de ser execrada! A sociedade decorre naturalmente da vontade divina, dizia-se no passado, e se hoje está como está é por causa das deturpações realizadas por tantos filósofos ateus e sociólogos preguiçosos que também não gostavam de trabalhar. Onde já se viu espalhar uma ideia de ricos serem iguais aos pobres! Isso é um sacrilégio, pois fomos feitos todos diferentes e é assim que tem que ser! Cada um com seu fardo, nada de inventar teorias sobre a sociedade!

Os Incapazes davam-se por contentes, contudo, viram que podiam ir ainda mais longe, pois filosofia e sociologia respingavam na história e na geografia, o que os levou a agir rapidamente e retroceder o país algumas décadas. Criaram sua agenda de dominação (ah, eles não permitiam que se usasse esse termo para suas táticas) e impuseram o estudo que melhor lhe conviesse no lugar das humanas: uma única religiosidade, civismo unilateral e moral fechada inquestionável, embora bradassem aos quatro ventos o direito às diferenças, amalgamavam a todos dessa forma. Livros já eram, naquela época, fortemente censurados. Em sala de aula só entrava aquilo que não contestasse a fé e os bons costumes. Biologia e química sofreram seus golpes também e em seguida cada uma das disciplinas teve seu tiro de misericórdia.

A loucura tomou conta dos Incapazes: sua incapacidade para o outro tornou-se incapacidade para si próprios. As leis que criavam beiravam a demência coletiva o que, àquele momento, pouco importava: o povo havia perdido a si mesmo.

No pedaço de jornal rasgado que encontrei em meu bolso no exílio eu consegui ler algumas linhas da loucura coletiva que tomou o país: 

Artigo 1º: fica proibido o ensino de ciências, física ou química. A sua prática considerar-se-á crime por analisarem cientificamente o mundo, o ser humano e o universo.
Artigo 2º: o exercício da prática do português obedecerá a mesma regra e cabe unicamente aos progenitores o ensino da língua escrita e falada, cabendo seu uso exclusivo para documentos técnicos, oficiais e religiosos.
Artigo 3º: o ensino da arte dar-se-á perante a análise minuciosa de sensor religioso. Qualquer possibilidade de ensinamento científico, poético ou profano incidirá em crime inafiançável.
Artigo 4º: o atributo de contagem de números somente será permitido aos escribas oficiais do governo.   
Artigo 5º: tornam-se proibidas qualquer reunião no intuito de ensinar...

E o papel rasgado morria ali. Ali também morriam as últimas escolas. O que houve em diante foi uma triste guerra civil em que irmãos matavam a irmãos e todos eram perseguidos. Hoje, dez anos depois o país retornou à tirania do passado e muitos como eu recebem diariamente mensagens em celular ou no e-mail nos ameaçando caso queiramos retornar.


Aquele foi meu país, não era um paraíso, mas era onde podia-se viver. Havia escolas, cultura e livros. Hoje há ordem e retrocesso para um povo carente de tudo, carente de si próprio, carente de identidade, de liberdade, de igualdade, de oportunidades. Um povo ainda mais carente de ser POVO. Ainda é um país. É bem menos que isso. É um país sem escolas. 
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