terça-feira, 2 de agosto de 2016

Educação e neutralidade: isso existe?

                                                                               

Eu bem que gostaria de me aprofundar teoricamente no assunto, mas creio não ser necessário. Afinal uma questão se impõe: é possível ensinar sem tomar partido em alguma situação ou corrente? A resposta é tão óbvia quanto a própria questão deixa transparecer. Não.

Pais ensinam seus filhos a agir no mundo desde pequenos conforme foram educados pelos seus pais. A educação garante mais que a transmissão de conteúdo, de conhecimento. No caso da educação familiar há sim certa transmissão de conhecimento, embora estudiosos repudiem o uso do verbo transmitir. Poder-se-á dizer que transmitimos informações, ou que as repassamos. Enfim, prefiro não utilizar tal palavra. E as palavras sempre tomam mais valor do que realmente acreditamos ter, ou pelo menos tendem a assumir significados mais diversos.



Dizia um poeta que “toda conversa é uma batalha de ideias” e as palavras são exatamente isso: ideias. Sem querer utilizamos das palavras e nem percebemos ao certo o teor que elas têm no decorrer de nossas conversas, nas nossas relações sociais e assim por diante. Um exemplo simples seriam as gírias e um exemplo comum envolve a palavra animal. Chamar alguém de animal pode ser uma ofensa, da mesma forma que dizer que algo é ‘animal’ converte a situação em algo fantástico.

                                                           

Quando os pais educam seus filhos lhes ensinam valores intrínsecos ao seu bem viver e como proceder em sociedade. Moral e ética, religiosidade e espiritualidade, até mesmo gostos em comum. Porém a vida em sociedade vai além daquilo tudo que aprendemos em casa e a cada nova situação vamos assimilando novos conhecimentos e formas de compreender, perceber, analisar e resolver os problemas da vida. O mundo cresce exponencialmente à medida que vamos nos envolvendo pela tessitura social e se torna impossível permanecer neutro perante as situações da vida. Em muitos casos somos obrigados a ser “oito ou oitenta”, em outros casos podemos ser outra coisa qualquer. A vida sempre nos permitirá novas escolhas e com elas as consequências que necessariamente nos farão crescer mais como pessoas.

Adentrar na escola é um desses momentos únicos na vida de qualquer pessoa e lá o universo cresce mais ainda. Nossa educação familiar agora sofre o embate constante de outras educações que ora se assemelham ora se opõem aquilo tudo que aprendemos. Ser quem somos exige de nós mudanças e resistências a estas, embora a cada instante precisamos estar atentos e prontos a adaptar-se, seja para ouvir o diferente e com ele aprender, seja para referendar aquilo que acreditamos estar certo. Em meio a esta batalha surge a figura do professor e todos os problemas a que já nos acostumamos a ouvir, desde o salário até as ameaças, sejam de pais ou alunos. O professor está em frangalhos, em maus lençóis, em apuros e por aí vai. A verdade é que a profissão nada é atraente e a mídia ainda corrobora para esfacelar de maneira bruta essa categoria. A escola tornou-se depósito e seus profissionais meros cuidadores. Feliz fica o professor ou a professora quando consegue encerrar o seu dia de trabalho expondo e discutindo as ideias, seu conteúdo, ensinando e aprendendo. Ser professor é estar pronto a aprender sempre, caso contrário a profissão transforma-se em mais um “empreguinho”, como afirmou recentemente um colunista na mídia.

Bem, aí vem a ideia de neutralidade, uma ideia há muito defendida nas ciências, inclusive nas humanas. Aliás, há quem critique as chamadas ciências humanas afirmando que sequer deveriam ser chamadas de ciências, visto que tomam o próprio ser humano como objeto de estudo e assim não teriam os cientistas sociais como se distanciar do objeto que estudam. Um físico estudando a natureza também não se distancia dela, não é mesmo? Ou o matemático estuda números de outra dimensão que não dizem respeito ao nosso universo imediato? O ranço maior é contra as ciências humanas, com toda certeza, e é lá onde se exige mais ainda uma suposta neutralidade que não há como existir. Nesse ponto emerge o debate de uma suposta doutrinação por parte dos professores sobre os alunos. Esta é uma afirmação muito grave.

A doutrina pode ser entendida como um conjunto de ideias que sustentam um sistema filosófico, político, religioso ou econômico, por exemplo. Nesse caso pode-se falar tanto em doutrina cristã quanto capitalista, liberal, comunista, etc. Surge então a ideia de que a escola pública brasileira esteja doutrinando seus alunos com ideais de esquerda, socialista, comunistas e marxistas, uma afirmação exagerada, para dizer o mínimo. E porque digo isso? Bem, se analisarmos a formação básica de nossos alunos egressos do ensino médio e iniciantes em qualquer curso universitário facilmente perceberemos que uma grande maioria sequer compreende os conceitos básicos da suposta doutrinação. Aliás, há tantos problemas em sala de aula que qualquer professor ou professora ficaria muito feliz se no meio centenas de alunos anuais uma ínfima parte conseguisse descrever satisfatoriamente os conceitos chaves de cada disciplina. Se levarmos em conta os aspectos psicológicos e a pressão exercida sobre os professores, ficaríamos aliviados se esses mesmos também compreendessem perfeitamente seus conceitos–chaves. Infelizmente não conhecemos sequer a fundo nossos direitos, a não ser quando são surrupiados de nós...


Quando encontramos algum aluno ou aluna mais interessados – aqueles que costumamos dizer: “Esse vai dar algo na vida!”, ou, “Nossa, que menina inteligente! Com certeza vai se dar muito bem, é muito inteligente!”, dificilmente estimulamos a ser professor ou professora. Eu mesmo passei por isso na escola e quando ingressei na licenciatura tive que ouvir de meus amigos e colegas: “Nossa Wagner, estais cursando história?! Não tinha um curso melhor?” As pessoas agem assim porque sabem que no fim seremos apenas um professor, um “empreguinho” qualquer, hoje quase um bico. Se não bastasse tudo isso, ainda somos taxados de doutrinadores. E, não, não é porque eu sou professor de sociologia e história minha revolta é maior. Aliás, essa revolta não é apenas minha.

A liberdade é o que está sendo posto em xeque. Não há como um professor ensinar sem se posicionar e existe um abismo enorme entre ensinar e obrigar os alunos a aceitarem uma determinada ideia. Em minhas aulas tenho alunos de diversas tendências religiosas, por exemplo. Quando eu era estudante os livros de ciências, geografia e história traziam o criacionismo e o evolucionismo, isso nos idos de 1992. Ainda hoje os livros tratam disso sem problema algum, afinal, é preciso respeitar as diversas teorias e isso aprendemos ainda na faculdade. Aos alunos digo que a escola trabalha como conhecimento científico, que a princípio é válido para todos, diferente de uma concepção religiosa, pois esta tem validade apenas aos grupos sociais que compartilham a mesma fé. É algo difícil para os alunos entenderem de início, mas assim que compreendem que suas verdades podem ser diferentes das verdades dos outros, fica mais fácil compreenderem do porquê a escola trabalhar com o conhecimento científico: este pretende uma validade universal e, embora as teorias possam ser rebatidas, o conhecimento científico vale para todos os grupos sociais. Se por acaso os alunos me questionam se concordo com a teoria evolucionista eu não posso me eximir da minha resposta. E se esta teoria for considerada uma afronta aos valores religiosos de um ou outro aluno em sala de aula? Ela deve ser extirpada dos bancos escolares? Bem, se você ainda vive com a cabeça na Idade Média, com certeza a resposta será sim...

O projeto Escola Sem Partido pretende impor essa suposta neutralidade, que não existe nem em seu nome: ser sem partido significa ser neutro? Nem aqui nem na Coréia! Há doutrinação esquerdista nas escolas? Se houvesse realmente as câmaras estaduais, municipais, prefeitos e governadores e maioria dos deputados e senadores não seriam de partidos de direita, não é mesmo?



Conviver significa viver juntos, com as semelhanças e as diferenças. Significa aceitar o preto e o branco e todos os tons de cinza que existem entre eles. Doutrinação ideológica é tentar passar uma ideia de neutralidade, de quem vive em cima do muro optando qual lado escolher conforme a direção do vento. E ideologia não se expressa apenas em palavras. Ideologia se expressa na marca das roupas, nos livros e filmes, no corte de cabelo, nas músicas que se ouve. A ideologia do professor ou da professora assim como todas as pessoas está encravada no seu jeito de ser, não pode ser retirada, apenas modificada, e olha lá...

Vivendo em tempos onde o pensar se torna cada vez mais relevante para um mundo melhor e onde as escolas são cada vez mais sucateadas, a figura do professor deixou de ser uma peça importante no quebra-cabeça social. Minha preocupação maior não é que alunos e alunas virem revolucionários de esquerda. Minha preocupação maior é saber que posso dividir um futuro com profissionais que saibam ouvir seus clientes, não respeitem a dor alheia, que não respeitem o meio ambiente, que provoquem o ódio contra o próximo. A continuar como está não precisaremos mais de escolas nem de professores. Estes serão considerados aliciadores, serão extintos e voltaremos ao tempo em que a educação escolar se torne um luxo de poucos. Com o deus google vigiando nossas vidas diariamente, para que precisaremos de mais escolas, não é mesmo?!

O texto é longo como todo desabafo tem que ser...



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Um comentário:

  1. Perfeito! Nem nas ciências humanas há neutralidade. Uma "escola sem partido" é a escola que defende a ideologia do conformismo, da ordem sem questionamentos. Além de censurar o trabalho docente, vai criar uma geração ainda mais alienada do que a nossa. As recentes ocupações de escolas e universidades feitas pelos estudantes nos mostra que há na atualidade jovens desejosos de mudar a nossa sociedade e é isso o que a direita mais teme.

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