sexta-feira, 6 de fevereiro de 2009

NOS MUROS COMODISTAS DA MODERNIDADE


junho de 2003
Ah, a modernidade! Os tempos modernos, encerrando em si toda a liberdade de pensamento, de movimento, que homens e mulheres nunca tiveram em outros tempos. Ouvimos hoje expressões como “cidade global”, “identidade cultural”, “globalização”, “cidadão do mundo”, “pós-modernidade”. Mas o que significa tudo isso? Quais as relações (que ainda sobrevivem) e fazem o mundo girar? Será que os pensadores anteriores à nossa época não estão a revirar-se em seus túmulos? O “turbilhão” da modernidade continua na ativa, e a cada dia envolvendo e revolvendo mais pessoas.
“Tudo que e sólido desmancha no ar”, nas palavras de Karl Marx vemos a dialética da vida, as mudanças, as contradições, o movimento. A vida mudando, desenvolvendo-se, o capitalismo que parece querer implodir-se, o socialismo não alcançado. Será que conseguiremos nos superar?
Hoje dizemos “O mundo vive”, “O mundo é”; ou seja, “globalizamos” até nossos pensamentos! A padronização em massa, a massificação dos padrões humanos; talvez devêssemos chamar isso de “individualismo coletivo”, em que as identidades se perdem em meio a sonhos comuns de privacidade. Se a nação é uma comunidade imaginada, fico a pensar que a nação corre risco de sumir ou ser superada. Podemos encarar isso como a “evolução natural” da vida, do pensamento humano. O condicionamento pelo qual a sociedade humana atravessa sugere a massificação que impõe suas regras e limites, extrapola as barreiras da nação. E então ouvimos o jovem orgulhoso que enche os pulmões para dizer: “Eu sou cidadão do mundo!”. Quantos escritores do século XX não foram profetas em suas histórias? E lembrando o filme Matrix: “O que é real?”. Onde está a nossa realidade, que aceitamos rotineiramente, porque sabemos que o tempo passa; mas, será que é o tempo que passa ou nós que passamos por ele?
E mais uma frase de Marx me vem à mente: “Tudo que é sacro é profanado”, mas esse sagrado pode ser compreendido como aquilo que cada um tem dentro de si. A vivência individual, os nossos sentimentos, esperanças, nossa memória, que pode ser subtraída do âmago do nosso ser para e controlada por um chip de computador. Essa profanação diz respeito ao nosso intelecto, ao nosso espírito, às nossas relações. A superação, (ou violação?) das relações humanas impostas pela modernidade, leva o ‘pensar’ e o ‘fazer’ a se desvencilhar dos locais onde são tradicionalmente pensados e realizados.
Podemos traçar uma linha evolutiva a partir da Revolução Industrial. Vivemos esse processo “mundializante” desde que os europeus atravessaram o “abismo” do Atlântico para chegar ao novo mundo. Quando o homem “renasce” para por fim as relações feudais, e começa questionar a Igreja e o Estado, a sociedade em geral entra num ritmo de mudanças. As fábricas surgiram para impor controle e disciplina aos trabalhadores, destruindo assim as relações artesanais entre produto e produtor. A própria Revolução Francesa ‘inaugurou’ uma nova era de liberdade e direitos humanos...
Atualmente vivemos as mudanças incansáveis, inabaláveis da modernidade. As relações capitalistas desafiam toda e qualquer tentativa de melhoria nas condições de vida dos mais miseráveis. Sim, porque a modernidade tem seus efeitos maléficos, que impõe a sociedade a um abismo profundo entre os proprietários e os despossuídos, aqui entendidos como aqueles pobres miseráveis que vivem à margem da sociedade. Pessoas que não têm direito a propriedade, nem que esta represente o possuir um direito qualquer, nem o direito a esperança elas têm. E a esperança é um ponto principal quando falamos da modernidade, do desmantelamento das relações, da uniformização da vida, do pensar, do agir, do fazer.
Mas onde está a esperança? Será que ela ainda está trancafiada na caixa de Pandora?
Talvez. Vemos hoje ‘pessoas-números’, vigiadas e controladas, pessoas livres para sonhar com a riqueza, pessoas livres para consumir, pessoas livres para escolher seus próprios patrões. A modernidade faz sua rima com a liberdade, bailam juntas, distorce o seu significado. Somos tão livres que escolhemos lutar divididos contra aquilo que nos esmaga. Somos livres para nos matarmos uns aos outros. Somos livres para vivermos em nossas casas com o controle remoto em nossas mãos a escolher o melhor canal de televisão. Somos livres para lutarmos pelo melhor emprego, para competir com unhas e dentes pelo salário mais alto. Somos livres para assalariarmos nosso conhecimento e quem sabe, se livremente escolhermos nossas profissões, nós livremente teremos nosso escritório, ou consultório, para podermos decidir sobre a liberdade dos outros. Nós temos a liberdade de expressão, e até a liberdade de ação. Se decidirmos levar nosso país a guerra, quem poderá nos impedir? A modernidade nos deu a liberdade, mas não aquela liberdade dita por Bob Marley: “Cada homem é livre para escolher a sua hora de morrer”. Tudo isso são mecanismos de controle que ligam a modernidade ao sistema capitalista. A própria fé parece ser muito mais um artigo de controle que um fundamento da esperança. A era da competição nulifica as pessoas que, quanto mais enterradas em si mesmas, mais parecem vazias. O mundo está tão carregado que parece cada vez mais vazio. Ouvimos tanto as pessoas dizerem por aí: “Aproveitem o dia!”, “Viva o hoje!”, ou até outras: “O que passou, passou, não voltará. Pense no amanhã!”, e parece ser essa a regra da modernidade. Quando o presente não é mais importante, olha-se para o futuro, ou seja, esquece-se o passado. A tecnologia exuberante, a revolução científica imprime ainda mais velocidade às mudanças no mundo moderno, apagando cada vez mais os traços do passado. A memória parece ser apagada como que com um simples “click” de computador, e é por isso que as pessoas parecem vazias, é por isso que as pessoas transformam-se em números, perdem suas identidades. A “comunidade imaginada” corre risco justamente por causa deste caráter moderno de se pensar o futuro. O passado é esquecido, os laços que davam certa estabilidade às pessoas em suas identidades, em tudo aquilo que as identificava com as relações que tinham entre si, as relações que as identificavam com o passado de uma nação, um sentimento, um forte desejo de soberania, individual, comunitária ou nacional, tudo isso acaba sendo transformada em lenha para a fogueira da modernidade.
Corremos o risco do “delete” do computador. Pode-se pensar isto até como pessimismo, mas a confiança me parece tão infeliz quanto a liberdade. Os heróis são comprados, as lutas são compradas, as idéias são profanadas e as esperanças são comercializadas. Não há mais política, não há mais religião, não há cultura. Oh, mas que pessimismo...
Em nosso comodismo não aceitamos que uma idéia, nova ou antiga, venha de encontro aos nossos costumes para aceitar a mudança. Erguemos nossos muros, a nossa volta, somos tão livres em nossas comodidades que não aceitamos a idéia de transpor os muros. Às vezes lutamos, mas por trás dos muros, sem jamais nos juntarmos às pessoas do lado de fora. Nos acostumamos tanto com os muros, que qualquer reflexão sobre isso nos enoja. Jamais abandonaremos nossa liberdade comodista tecnológica. Jamais aceitaremos dividi-las com as pessoas do outro lado do muro. Em nosso comodismo livre, jamais aceitaremos negar nossos sonhos corruptos de riqueza e liberdade para transpor os muros impostos pela modernidade e dividir aquilo que almejamos com os despossuídos da nação, os marginalizados pela globalização, os excluídos e desmoralizados da modernidade.
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