Nunca
deixe de lembrar (Never look away), filme alemão do diretor Florian Henckel von
Donnersmarck de 2018 nos traz uma obra de arte sensível e singela sem parecer
em momento algum enfadonha. A sensibilidade do filme explode suavemente em cada
camada de luz e cor que perpassa a película, saboreando-nos ainda mais com uma
edição de som primorosa. As imagens dançam na tela com uma profundidade densa
sem ser pesada.
O
protagonista, Kurt Barnert, vivido pelo ator Tom Schilling é quem nos move por
essa jornada cinematográfica, iniciando seu caminho ainda criança na Alemanha
em princípios do totalitarismo nazista. Aliás, convém lembrar que o
protagonista desenvolve-se por três períodos históricos que são amarrados muito
firmemente ao mesmo tempo em que impregnam o personagem com as dúvidas de quem
cresceu em mundos distintos.
Primeiramente,
na infância de Kurt o vemos na cena inicial do filme visitando uma exposição de
arte. Ao vê-lo guiado por sua tia imaginamos tratar-se dela quando na verdade
ela é quem dá a base ao pequeno Kurt nesse mundo da arte. Mundo esse encravado
agora no nazismo alemão que julgava depravada a arte que não servia aos ideais
da grande pátria ariana. O primeiro contato de Kurt com esse mundo da arte é um
embate entre a inocência da criança e a inocência/ingenuidade/loucura/liberdade
da sua jovem tia. Elizabeth, a tia de Kurt, representa, de certa forma, esse
misto de sentimentos que vão da loucura e inocência aos desejos ingênuos de
liberdade. Que não nos percamos aqui: a tia pode ser ingênua, mas jamais louca numa
acepção completa da palavra e protagoniza uma cena das mais simples e belas ao
pedir uma sinfonia de buzinas aos motoristas de ônibus. Seu destino,
infelizmente, torna-se o destino daquelas pessoas cujo caminho tratou de ser
interpolado por um regime político dissonante de seus sonhos de vida. É nesse
momento que a guerra entra em cena, de maneira rápida e concisa, o que é bom,
pois o filme não tem a obrigação de tratar das desgraças beligerantes. Ponto
favorável, nesse sentido, ao mostrar o desenvolvimento de pessoas comuns que
foram infringidas pelo peso esmagador do nazismo e de um conflito bélico
avassalador. Sem desmerecer o sofrimento de outros povos, o filme traz esse
ponto de vista que poucas vezes vemos no cinema e fica expressa em uma fala do
pai de Kurt ao procurar emprego no pós-guerra: “Oras, três quartos dos professores eram do partido!” E por esse
motivo ele não consegue emprego, situação que já serve de gancho para pensar-se
como a hegemonia nazista introjetou-se no seio de cada instituição da sociedade
alemã, nesse caso, a escolar.
Passado
o horror da guerra, temos então um novo período de reconstrução na vida do
nosso personagem Kurt, já adolescente tendo que enfrentar todos os problemas de
um novo regime: sua Alemanha agora vive sob a égide de outro sistema, o
socialismo soviético, no qual Kurt vai se estabelecer como artista do povo. O “militante
das tintas e pinceis” não milita e nem demonstra alguma forte convicção
política, estética ou mesmo moral pelo regime. O que percebe-se é uma pessoa
comum, outras pessoas comuns atravessando os difíceis momentos de uma época, de
um totalitarismo a outro e tendo que sobreviver com muitas ou poucas
expectativas a realidade ditada, hora por um regime, hora por outro.
Entretanto, não se trata de pura apatia, conveniência ou total desconhecimento
da realidade, mas tão somente a sobrevivência cotidiana.
Concomitante
à vivência de Kurt desenvolve-se a história do médico Carl Seeband (Sebastian
Koch), o qual exige ser tratado como “professor” a todo instante. O seu orgulho
em fazer parte do regime nazista é auto evidenciado em sua própria existência,
da fala à postura. É ele quem define o rumos da história de Elizabeth, a tia de
Kurt, representando fielmente a crença nazista da eliminação dos fracos e
doentes, sejam físicos ou mentais. O talento médico de Seeband é utilizado
dentro do pensamento totalitário de elevar o nível da raça pura subtraindo da
sociedade aqueles e aquelas cujos traços genéticos não condizem com a
perfeição. No entanto, seu orgulho em ser o melhor médico o leva do nazismo ao
socialismo em uma transição quase natural para aqueles que perseguem o poder e
fazem de tudo para manter-se no topo acreditando-se vigorosamente que é o
melhor dentre os melhores.
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Elizabeth, a tia de Kurt, interpretada pela atriz Saskia Rosendahl |
Herr Professor
emoldura outro lado da história, um quase contraponto direto ao personagem de
Kurt que, agora, estudando na faculdade de artes, vê novamente outra pessoa
ditando-lhe o que vem a ser a arte. Se, no início do filme a arte é desprezada
ou engrandecida conforme o ideal nazista, a partir da segunda parte do filme
ela é estabelecida segundo os ditames do realismo soviético, pois o artista
deve ser aquele que tinge os sentimentos da pátria e do povo com os traços
fortes de uma realidade que nada tem de abstrata. Vemos então o professor de
Kurt fazer seu discurso apontando as falhas de uma arte burguesa ocidental capitalista
maculada pelo eu. “Sempre o eu, eu, eu!”
Nada mais concernente com o pensamento do socialismo soviético, que no filme
apresenta, pode-se dizer, o indivíduo se diluindo em nome do coletivo. Sua arte
deve, assim, representar esse ente maior que é o coletivo acima de todos. Se o
pai de Kurt fora um professor adepto ao nazismo por obrigação, caricaturando um
“Veil Vinkler”, seu professor
socialista na faculdade de artes emociona-se com o potencial do jovem Kurt em
dar cor e forma aos anseios artísticos do regime.
É
nessa fase que o jovem Kurt conhece o amor e também aqui um ponto favorável ao
filme em mostrar toda a simplicidade e profundidade de uma trama em que dois
jovens apaixonam-se. O amor aqui é tratado como uma história que deve parecer
familiar a muitas pessoas. Uma escapada espetacular, uma mãe que já sabe de
tudo, simpatiza com o namorado da filha mas nada conta. Um pai característico
de uma época que quer apenas o “melhor” para sua filha. O seu melhor, não o
melhor que ela busca. Todavia, em se tratar de uma história de amor, também a
história de Kurt Barnert e Ellie Seeband – interpretada pela talentosa Paula
Beer – passa por cima de todos os obstáculos que podem enfrentar, inclusive a
repulsa de um pai autoritário que demonstra seu autoritarismo e repulsa sem
deixar de ser, de certa forma, refinado. Algo nos leva a pensar: o pai foi
nazista por ter sido doutrinado no regime ou já trazia dentro de si todo um
ideal de existência que apenas aflorou durante o Reich? É de fato muito
interessante pensar as camadas e nuances que se estabelecem na figura de Herr Professor, visto que de tão bom
nazista tornou-se um bom socialista também, mesmo que possamos duvidar dessa
camada da figura pública que ele encarna perante a sociedade. A crítica aqui
nos revela algo que todos nós sabemos: há um modo de ser público e um modo de
ser privado. Bem, pelo menos para o pai de Ellie. Kurt, por outro lado é uma
pessoa simples, quase um livro aberto, sendo quem ele é em todos os lugares em
que está. Obviamente essa abertura livresca não caracteriza nem
superficialmente sua personagem, pois suas camadas são mais reveladas ao
público que assiste a obra do que aos outros personagens da trama, nem mesmo à
sua esposa. Ellie nunca fica de lado durante a história, vivendo cada decisão
de Kurt, sofrendo o autoritarismo do pai e sendo mais que uma mera coadjuvante.
Outro
momento histórico surge no filme como um parágrafo surge em uma história e
marca o início da terceira parte na jornada de Kurt e de Ellie. Vemos o casal
saindo da Alemanha Oriental pouco antes das portas se fecharem com a construção
do Muro de Berlim. Assim ambos deixam para trás dois regimes totalitários que
marcaram suas vidas, no corpo e na alma, literalmente. Tanto na alma de Kurt
quanto no corpo de Ellie, ferida propositadamente por uma ideologia de
superioridade de uma raça que não deveria se misturar com outra de menor
significância.
No
moderno mundo capitalista ocidental surgem agora novas possibilidades de
existir e o passado pode ser apenas o que ele é: passado. Mesmo que suas marcas
acompanhem o ser de Kurt e Ellie. É nesse novo mundo em que não há espaço para
totalitarismos que Kurt vai tentar procurar sua arte. O que é muito importante
para ele e instigante, pois a mensagem que lhe passam não deixa de ser
totalitária: se você já tem trinta anos e
não criou nada ainda, você já era. A realidade mais uma vez esmagando quem
procura ir além daquilo que lhe é dito. Esse é o novo desafio para um artista
cuja busca pelo estilo próprio pode ser agora mais tempestuoso do que imaginava
ser antes. Pode-se inferir, inclusive, que a todo instante tentam dizer a Kurt
o que a arte deve ser, o que a arte é, porém, o que ele nunca deixa de lembrar
e o filme faz questão de nos recordar é que a arte é, antes de tudo, uma busca
de liberdade. Uma busca que custou a sua tia mais que sua própria liberdade.
Mas uma busca que deixou marcas tão profundas em Kurt que nem mesmo sua
situação econômica foi capaz de derrubá-lo. Nem mesmo as artimanhas de seu sogro
foram capazes de destruir em Kurt sua busca pelo seu talento.
A
obra do diretor Florian Henckel von Donnersmarck mais uma vez nos toca assim
como já havia feito em sua outra película, “A
vida dos outros”, de 2007. Ao estabelecer os totalitarismos que esmagaram a
história alemã, o diretor também nos faz pensar sobre os totalitarismos diários
que aqui e acola açoitam nossas decisões diárias.

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